A Consciência Corporal na Perspectiva da Educação Física
Comunicação

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Revista Educação Física

A Consciência Corporal na Perspectiva da Educação Física

A Consciência Corporal na Perspectiva da Educação Física
Carmem Elisa Henn Brandl

Introdução

A Educação Física, nossa velha conhecida, tatuada ao longo de sua história com o estigma de dualista e mecanicista, influenciada pelo paradigma cartesiano, que domina tanto a Ciência como a Educação nestes últimos séculos, teve e tem, em sua caminhada, especialmente nas duas últimas décadas, movimentos e momentos que caracterizam sua evolução. Surgiram nesse período, renomados teóricos, divulgando seus trabalhos, que, com certeza trouxeram contribuições para esta área.

Entre esses estudiosos podemos citar, a partir da década de 1970, a contribuição do francês Jean Le Boulch, com a teoria da Psicocinética; na década de 1980, do português Manuel Sérgio, com a teoria da Motricidade Humana, entre outros. No Brasil, e de forma mais densa, a partir dos anos 1990, e com ênfase maior na Educação Física Escolar, surgem obras que terão grande valor para o desenvolvimento da área.

Embora alguns avanços tenham sido conquistados na Educação Física, muitas pesquisas realizadas no cotidiano escolar ainda revelam a predominância de uma Educação Física tradicional na qual as práticas pedagógicas se reduzem exclusivamente ao ensino de técnicas e regras desportivas predeterminadas através de metodologias diretivas. Nesta perspectiva, o aluno é tratado como um mero repetidor (autômato, robô) de habilidades, consideradas importantes ou não pelo professor, que neste caso tem total autoridade no processo de ensino-aprendizagem. Com certeza esta Educação Física não serve mais.

A maioria de nós (professores de Educação Física) percebe a necessidade de encarar a Educação Física numa perspectiva mais abrangente, especialmente no que diz respeito ao tratamento dado ao aluno, que não pode ser considerado como sujeito-objeto, mas sim, um sujeito-próprio, que possui uma identidade, capacidades e limitações e, principalmente, dotado de intencionalidade. Um ser capaz de sentir, pensar e agir, nas palavras de Gonçalves (1994).

Moreira (1995b:101) propõe para a Educação Física uma revisão de valores, em que: O corpo-objeto da Educação Física ceda lugar para o corpo-sujeito da Educação Motora; o ato mecânico no trabalho corporal da Educação Física ceda lugar para o ato da corporeidade consciente da Educação Motora: a busca frenética do rendimento da Educação Física ceda lugar para a prática prazerosa e lúdica da Educação Motora; a participação elitista que reduz o número de envolvidos nas atividades esportivas da Educação Física ceda lugar a um esporte participativo com grande número de seres humanos festejando e se comunicando na Educação Motora; o ritmo padronizado e uníssono da prática de atividades físicas na Educação Física ceda lugar ao respeito ao ritmo próprio executado pelos participantes da Educação Motora.

E é exatamente pensando neste aluno (sujeito-próprio) que devemos reformular diversas questões do processo ensino-aprendizagem na Educação Física. Uma das alternativas propostas, ou melhor, investigadas neste trabalho, é tentar dar maior autonomia aos alunos nas práticas motoras. Este processo, no meu entender, estará sendo favorecido pela tomada de consciência. Consciência esta que é corporal, portanto, propõe-se trabalhar nas aulas de Educação Física a consciência corporal.

Certamente este é um tema bastante amplo e que invade diversas áreas e diferentes perspectivas. Por isso, delimitarei este texto, aos seguintes objetivos:

Apresentar a abordagem Filosófica da Consciência corporal;

Relacionar a Consciência Corporal com a Educação Física.

Abordagem filosófica

A Educação Física, em busca de uma identificação como área de conhecimento, esteve e ainda está muito vinculada à área biológica. A dimensão do movimento humano, ou do corpo humano, dentro de uma visão unitária de homem é bem maior. Portanto, ao tratar do tema Consciência corporal, houve a necessidade de visualizar também esta abordagem.
Alguns autores, como Moreira, Freire, Medina, Gonçalves e outros exprimem em suas obras a necessidade de essa área, que é do corpo em movimento, incorporar e buscar subsídios além das áreas biológicas (anatomia, fisiologia, cinesiologia e, mais recentemente, na psicologia), e acreditam que também a filosofia possa trazer contribuições para a Educação Física, especialmente no que diz respeito à concepção de corpo.

Conforme Moreira (1995:22), Olhar sensivelmente os corpos que passam pela aula de Educação Motora é ir buscar não mais a disciplina, mas a consciência corporal, mesmo porque o ato de conhecer não é mental; ele é, antes de tudo, corpóreo.

Para Olivier (1995), todo conhecimento inclusive o de si mesmo passa pelo corpo. Merleau Ponty, apud Olivier (1995:72), escreve que: O homem é um ser encarnado: é consciente de ter um corpo e todos os seus atos de autoconsciência são filtrados através do corpo. Este mesmo autor, ao abordar a relação consciência e corpo, afirma: ... toda consciência é consciência perceptiva, mesmo a consciência de nós mesmos.

Castellani, apud Olivier (1995:22), conceitua consciência corporal como: sua compreensão a respeito dos signos tatuados em seu corpo pelos aspectos socioculturais de momentos históricos determinados. É fazê-lo sabedor de que seu corpo sempre estará expressando o discurso hogemônico de uma época e que a compreensão do significado desse 'discurso', bem como de seus determinantes, é condição para que ele possa vir a participar do processo de construção de seu tempo e, por conseguinte, da elaboração dos signos a serem gravados em seu corpo.

Olivier (1995) entende que a consciência do corpo, em seus determinantes psicológicos, sócio-históricos, biológicos os quais não são distintos e nem distinguíveis na práxis humana, é condição fundamental à liberdade.

A visão que Regis de Morais (1992) nos passa sobre consciência corporal é um tanto quanto diferente daquela que nós já nos reportamos. Este autor, primeiro diferencia o corpo delineado em laboratórios em suas estruturas anatômicas e fisiológicas (necessário para estudos objetivos) dos corpos que somos e vivenciamos no complexo horizonte da existencialização. Após, demonstra as duas facetas do corpo, ou seja, corpo-problema (desafio na condição de sujeito cognoscente, possível de equacionamento, e eventual solução); e corpo-mistério (envolve, carrega o mistério da vida que escapa aos argumentos médicos). Ambos abrangem o corpo do homem. A seguir, o autor demonstra o dualismo que distingue o corpo da consciência, o organismo físico da alma. Já nesta visão, ele associa a consciência à inteligência que obviamente não se resume no córtex cerebral (é por isso que consid er o uma vis ão diferenciada). Discordando da posição dualista, embora ciente de que nossa linguagem não possui argumentos que expliquem a unidade do homem, o autor coloca que somos (e não temos) um corpo. Somos um corpo como forma de presença no mundo, porque sendo nossa presença mais apropriadamente vinculada ao nosso comportamento, torna-se inverídica ou, no mínimo, inacessível no vivente a dicotomia consciência e corpo.

Veremos que o corpo é consciente e, por isso, devemos falar em corpo/consciência; afinal, já não é lícito reduzirmos a noção de consciência à de raciocínio, uma vez que o corpo apresenta claramente uma consciência e uma sabedoria que não precisam de raciocínios. Inexiste qualquer atitude humana que seja puramente interior ou da subjetividade puramente pensante; toda atitude do ser humano é atitude corporal. Podemos mesmo dizer que, mediante nossas reações neuromusculares, é que nos damos conta (pensamento) de nossos conteúdos pessoais até aqui chamados interioridade. Depressão, angústia, medo, como também euforia, otimismo e tranqüilidade, são todos esses sentimentos detonados na estrutura corporal e então captados por nossa interioridade.(Régis de Moraes, 1992:79)

E continua: ...a mais avançada antropologia filosófica defende a consciência corporal, buscando perscrutar de um modo que a muitos de nossos antepassados foi impossível as muitas sabedorias dos corpos.

Para fazer a relação de consciência corporal do ponto de vista filosófico com a Educação Física, retomarei as palavras de Olivier (1995): A consciência do corpo, em seus determinantes psicológicos, sócio-históricos, biológicos os quais não são distintos e nem distinguíveis na práxis humana é condição fundamental à liberdade.

Para melhor compreender a abordagem filosófica da Consciência corporal é fundamental realizar estudo mais aprofundado de questões da Corporeidade, diferentes percepções do corpo no decorrer da história ocidental e outras. Mas este é tema para um outro trabalho.

Considerações finais

Não será possível concluir este assunto, mas acredito que tal estudo levou-me a muitos outros questionamentos e me deu condições para algumas reflexões.

Do ponto de vista da Educação Psicomotora, os conceitos de Esquema corporal e Imagem corporal deixam muito a desejar se tomarmos estes como sinônimo de Consciência corporal. Mas se os entendermos como parte do processo, eles são extremamente importantes. Considero esses conteúdos (da psicomotricidade) indispensáveis ao processo do desenvolvimento da criança. Não nos interessa, no momento, discutir de quem é a responsabilidade de trabalhá-los (psicólogo, professor regente de classe ou professor de Educação Física), mas não tenho dúvida de que a Educação Física, dentro de uma nova perspectiva, poderá contribuir para o desenvolvimento dos mesmos.

A necessidade de uma visão mais ampla fez-me introduzir neste trabalho um item denominado Abordagem filosófica. A partir dessas leituras é que pude perceber a complexidade desse tema. Consciência corporal, de um ponto de vista mais abrangente, não se resume em conhecer, ou mesmo dominar o próprio corpo, mas em ter a consciência de que somos um corpo e que toda a atitude do ser humano é corporal. Portanto, para dar maior autonomia às práticas motoras, através do estímulo à consciência corporal, acredito que, ao encarar a Educação Física dentro de uma nova perspectiva em que o aluno é tratado como ser-sujeito e não como objeto, ou melhor, um ser que pensa, sente e age, com certeza estaremos respeitando-o como ser humano, portanto, ser livre.

Professora Mestre da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - CREF 000322-G/PR.

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