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Projeto social leva atletismo aos jovens de Torres 24/04/2019

Concentrados, os cinco adolescentes curvam ligeiramente a coluna para a frente, encaixam o pé direito na linha imaginária e mantêm o olhar fixo para o professor de Educação Física Cláudio Freitas [CREF 020837-G/RS], 36 anos. Quando ele apita, é dada a largada para a disputa que só termina 400 metros depois. Finalizado o percurso, os cinco fazem uma pausa para beber água e descansar, enquanto outros jovens da equipe treinam no mesmo circuito.

As atividades são organizadas em uma pista atlética improvisada sobre o calçamento das ruas F, G, D e Antônio Pereira Filho, no bairro Morada das Palmeiras, em Torres. Desde 2011, as mesmas vias são usadas às terças-feiras, às quintas e aos sábados, entre as 17h30min e as 19h, para os treinamentos dos 80 participantes do projeto social Brincar de Correr, direcionado a crianças e adolescentes da periferia do município do Litoral Norte. 

Idealizada por Freitas e pela Associação dos Corredores de Torres (Ascort), da qual ele faz parte, a ação tem como meta o desenvolvimento humano e a inclusão social por meio do atletismo. Durante os treinos, que vão da iniciação esportiva ao alto rendimento, são discutidos temas como estudos, trabalho, preservação do ambiente, alimentação adequada e descanso recomendado. 

— O que me move é ver a satisfação da criança quando ela se diverte e não fica pensando em besteiras — justifica Freitas, entre um apito e outro.

Sem uma sede oficial, os treinos técnicos são comandados pelo professor nas ruas do bairro ainda em expansão — faça sol ou chova. Os de reforço muscular são realizados nas areias das praias de Torres. Três vezes por semana, os atletas com melhor desempenho praticam atividades nos morros e na praia da Guarita e ainda fazem musculação em uma academia parceira do projeto.

Desde o ano passado, um funcionário indicado pela prefeitura é o responsável por fechar com cavaletes as vias usadas durante as aulas no Morada das Palmeiras. As crianças são monitoradas por um auxiliar de Freitas. Nas categorias iniciais, os alunos participam de brincadeiras lúdicas e atividades físicas adaptadas para cada faixa etária. Conforme a evolução, passam para a pista e aumentam gradativamente as metas de distância até o técnico identificar o que é melhor para cada participante.

Freitas é o encarregado de orientar os adolescentes e adultos até 23 anos que ainda integram o projeto. Munido de apito e cronômetro, ele começa os treinos com alongamentos e o aquecimento. A turma, geralmente, tem cerca de 30 alunos especializados nas diferentes provas de corrida. Depois de uma volta troteada de 400 metros na pista improvisada, é hora de cada um iniciar as atividades indicadas para si. Por estar sozinho no comando, Freitas costuma se posicionar em uma das esquinas para conseguir monitorar todos os praticantes. Para quem não está acostumado às aulas, é quase impossível acompanhar o ritmo. Ele, ao contrário, parece ter múltiplos olhos e mãos de tantos praticantes e cronômetros que controla simultaneamente.

— E aí, Murilo, cansou? — pergunta o técnico para um dos alunos.

— Pois é, professor, cheguei no talo — responde o guri, esbaforido, na linha de chegada.

— Cuidado para não atropelar a Bela — grita Freitas para outro, ainda nos 300 metros.

— Pode deixar, professor — responde prontamente um garoto. 

— Joelho alto! Joelho alto! — exige o técnico a uma das jovens ainda em aquecimento na linha dos 100 metros.

— Tá tranquilo, professor — sinaliza a garota.

— Isso! Um minuto e 13 segundos! Tu tá forte, rapaz! — incentiva mais um, na chegada.

— Tem um ventinho segurando a reta, professor. Poderia ter ido melhor — retruca o elogiado, após 400 metros.

— “Sor”, posso fazer um intervalo? — pede uma adolescente.

— Não tá na hora ainda. Faz um trote — determina Freitas.

Os diálogos se sucedem rapidamente. O foco é melhorar os tempos para chegarem às competições em condições de disputar com atletas cujos treinos ocorrem em áreas mais apropriadas. A falta de um espaço específico para os trabalhos não tira a motivação do professor e da gurizada. E o que era para ser apenas uma distração no horário inverso ao da escola se tornou meta de vida para alguns.

Medalhas acumuladas

Ao longo dos últimos anos, os bons resultados nas competições só aumentaram. Entre 2014 e 2018, por exemplo, foram 32 campeões, 35 vices e 56 terceiros lugares em campeonatos gaúchos, em diferentes modalidades. Das corridas de rua disputadas em circuitos pelo Brasil, os representantes do projeto Brincar de Correr trouxeram para casa 63 títulos e 74 medalhas e troféus de segundo e terceiros lugares. Nos últimos anos, os alunos conquistaram as primeiras posições no campeonato brasileiro sub-18 de cross country, em São Paulo, e nos brasileiros de 200 metros, 1.500 metros e 3.000 metros. São os casos do velocista Pedro do Nascimento, 17 anos, e dos fundistas Eduardo Bandeira, 16, e José Daniel dos Santos, 19.

Freitas destaca que, para um praticante chegar ao ápice, são necessários pelo menos três anos de total dedicação ao esporte, incluindo treinos diários de prática e de força, boas horas de sono e uma alimentação balanceada. No caso dos integrantes do Brincar de Correr, ainda há a exigência de estar matriculado e com boas notas na escola. Mais de mil crianças já passaram pelo projeto, que hoje tem apoio do comércio local, da administração municipal e da Ulbra/Campus Torres (que cede estagiários de Educação Física), mas ainda precisa de ajuda para a compra dos tênis usados pelos atletas. O Brincar de Correr oferece atendimento de nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta e quiropraxista. Por mês, se tivesse que desembolsar o gasto total com os atletas, Freitas calcula que seriam necessários mais de R$ 1 mil para cada um deles.

Casado e pai de dois filhos (Murilo, oito anos, e Pedro Henrique, 13 anos, que foi campeão no ano passado nos 1.000 metros rasos nos jogos escolares estaduais), Freitas é professor de Educação Física num hotel em Torres, já foi um dos treinadores da seleção gaúcha nos jogos escolares, em 2017, e atua na área do voluntariado desde a década de 1990, quando começou a ensinar capoeira gratuitamente nas áreas mais carentes da cidade.

— A gente tem de ocupar a mente das crianças, que são o bem mais precioso que temos no mundo. Elas podem não se tornar atletas, mas virarão pessoas boas para a sociedade — sustenta.

Em 2016, Freitas foi um dos selecionados para carregar a tocha olímpica nas ruas de Torres, fato que ele considera um sonho realizado. O maior desejo do técnico, porém, ainda segue sem ser concretizado. Ele quer ver os pupilos numa pista de corrida na própria cidade. Com o sucesso do Brincar de Correr, Freitas está próximo da realização também desse desejo: a prefeitura promete entregar uma pista atlética aos jovens atletas ainda neste ano.

"Ele é meu segundo pai"

O universitário Lucas Souza, 20 anos, gostava de futsal até ser descoberto por Freitas, há cinco anos, numa rústica na cidade. O jovem, que sempre gostou de correr, aceitou participar do projeto. Desde então, descobriu que o mundo pode ir além das vias do Morada das Palmeiras.

Representando o Brincar de Correr, ele disputou seis campeonatos brasileiros e até um grand prix sul-americano no Uruguai. Em agosto do ano passado, o jovem e outros três colegas conquistaram a medalha de ouro nos 4 x 100 metros do campeonato estadual adulto, realizado na Sogipa, na Capital. Além dos treinos de segunda a sábado, Souza cursa o primeiro semestre de Educação Física e trabalha em uma academia da cidade. Ele garante que o projeto o ajudou a moldar seu próprio caráter e se emociona ao falar de Freitas.

— Ele é o meu segundo pai, pois está sempre junto. Não nos deixa sozinhos, mostra o caminho para a gente. Se hoje estou cursando uma faculdade foi porque ele me incentivou a seguir estudando — diz, afirmando que pretende se profissionalizar na área e seguir ajudando o projeto.



Fonte: GaúchaZH